terça-feira, 6 de agosto de 2013

COMO MATAR A LINGUAGEM EM DUAS LIÇÕES

Por Marcos Bagno.


Num artigo publicado inicialmente em jornal (1999) e mais tarde incluído no livroEstrangeirismos: guerras em torno das línguas (Parábola Editorial, 2001), organizado por ele, o linguista Carlos Alberto Faraco se referiu sem rodeios à “miséria da educação linguística que se oferece na escola brasileira”. Já entramos na segunda década do novo século (aliás, do novo milênio!) e, infelizmente, esse estado de miséria pouco se alterou – o que é bastante previsível, uma vez que quinhentos anos de atraso educacional não se resolvem de uma hora para a outra.
Definitivamente, parafraseando Hamlet, há algo de podre no reino da educação brasileira. A pedagogia de língua no Brasil tem se pautado – obsessivamente – por algo que recebe o nome equivocado de “ensino de gramática”. Por que esse nome é equivocado? Porque muitos e muitos problemas educacionais se resolveriam se, de fato, de verdade, pra valer, existisse algo semelhante a “ensino de gramática” nas nossas escolas. O que se chama de “ensino de gramática”, no entanto, como já vem sendo denunciado há décadas por tantos pesquisadores (ver o livro Gramática na escola, de Maria Helena de Moura Neves, Ed. Contexto, 1990), é a pobre e indigente tarefa de classificar ruínas de linguagem: esqueletos sem carne ou lascas de carne sem osso.
Naquele livro, Moura Neves oferecia um quadro desolador desse falso “ensino de gramática”. Depois de entrevistar docentes de Língua Portuguesa das mais variadas escolas do estado de São Paulo (o mais rico e industrializado do país!), ela concluiu que quase 80 por cento do tempo de aula dessa disciplina era desperdiçado com a velha “análise morfológica” e a ainda mais velha “análise sintática”.
É claro que não existe problema nenhum nessas análises, assim como o uso dametalinguagem também não é nenhum problema. O problema é impor essas tarefas como finalidades em si mesmas, quando, do modo como elas se realizam, o que se constata nelas é a total ausência de qualquer finalidade que seja. Se existir um motivo real, relevante e honesto para as análises morfossintáticas, então que venham muitas e muitas atividades metalinguísticas. Conceitos fundamentais como transitividade, por exemplo, se fossem bem apreendidos, iluminariam vastos domínios desse reino obscuro e pantanoso que é a nossa educação linguística.
No entanto, como se fosse possível, a coisa ainda pode piorar quando topamos com aquelas que chamo – com toda a ironia cabível – de atividades matalinguísticas, isto é, aqueles exercícios em que se destrói o que a linguagem tem de mais importante, que é a ativação da inteligência gramatical intuitiva que todo e qualquer falante traz dentro de si. Essas atividades são as que procuram matar logo no berço o letramento incipiente dos alunos, esses mesmos que chegam no final do 8° ano com um nível rudimentar de alfabetismo. Tarefas que não se valem de frases artificialmente criadas e sim — pior, muito pior, infinitamente pior — de textos literários (ou, melhor dizendo, de fragmentos de textos literários) que não são objeto de nenhum trabalho de leitura, mas apenas de atividades estéreis que só podem contribuir para elevar a já reconhecida repulsa dos aprendizes pelas “aulas de português”:
3 Leia este fragmento de um poema

Profundamente
[...]
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Profundamente.
                            Manuel Bandeira

a) Escreva no caderno se as palavras destacadas estão relacionadas a um verbo ou a um substantivo.
b) Quais delas são adjetivos e quais são advérbios?
c) De que tipo são esses advérbios destacados?
d) No caderno, transcreva do poema uma locução adverbial que expresse cada uma das circunstâncias abaixo.
  • tempo • lugar
e) Ainda no caderno, escreva um advérbio ou uma locução adverbial para cada um destes verbos.
  • dançavam • cantavam • riam

4. Observe:

Palavras conjeturadas
oscilam no ar de surpresas,
como peludas aranhas
na gosma das teias densas.

Cecília Meireles

a) Essa estrofe contém um período composto por duas orações. Transcreva a oração principal e a subordinada, classificando-a.
b) Identifique:
  • a dupla de termos comparados.
  • o verbo subentendido na oração subordinada.

5. Leia:

Nunca serão as espadas
lisas como o meu coração,
mas grossas e enferrujadas.

Cecília Meireles

Reescreva, em prosa, o período contido nesses três versos:
• antepondo o sujeito ao verbo na oração principal;
• completando a oração subordinada adverbial comparativa com o verbo e predicativo subentendidos;
• completando a oração coordenada sindética adversativa com o verbo subentendido.

Esses exercícios falam por si sós. Seu absurdo pedagógico grita em nossos ouvidos: transformar o trabalho artístico de duas das mais importantes vozes líricas da nossa literatura — Manuel Bandeira e Cecília Meireles — em cadáveres textuais para serem submetidos à autópsia morfológica e sintática! Fazer isso com “Profundamente”, um dos mais comoventes poemas jamais escritos em língua portuguesa? Citar versos de Cecília Meireles sem nem sequer indicar de que poema ou livro foram tão violentamente arrancados?
Miséria absoluta, já que, “com tudo isso, fica configurado, acima de tudo, que se prescinde de toda reflexão para falar de ‘gramática’, e que se desconhece absolutamente o uso da linguagem quando se trata a ‘gramática’ da língua" (M. H. Moura Neves).
Esses exercícios (que, desgraçadamente, coletei de livros didáticos contemporâneos, que estão aí no mercado) cumprem à perfeição, e numa tacada só, duas tarefas abjetas: matar o gosto pelo estudo da linguagem e, ao mesmo tempo, matar qualquer possibilidade de levar os aprendizes a se interessar pela poesia.
Se, em outra peça de Shakespeare, um soberano desesperado, de pé no meio da batalha, exclama “Meu reino por um cavalo!”, muitos de nós, educadores comprometidos, talvez pudéssemos gritar: “Meu reino por aulas de gramática dignas desse nome!”.
E assim estamos: não ensinamos nossos alunos nem a ler, nem a escrever e, muito menos, a refletir sobre a língua em que não leem e em que não escrevem.